Tercio de Melo Sousa

Um Gostinho do Inferno no Rio: Arrastão no Túnel

2024-09-21

Arrastões sempre foram algo de fora da minha realidade, que eu via na TV, que acontece no Rio de Janeiro e em São Paulo, aquelas mepalópoles onde acontecimentos ruins importam. Todo mundo no Brasil está a par dos problemas do Rio, a violência, crime organizado, polícia corrupta, políticos mais ainda, etc. As pessoas tem medo do Rio, e eu certamente tinha.


Primeiro Strike

Em 2018 eu morava em São Paulo, trabalhava na Amazon, insatisfeito com o trabalho, e meu amigo Remy estava morando no Rio, muito feliz trabalhando na VTEX. Ele insistia que eu deveria dar uma chance à VTEX, e eventualmente eu dei. Fui convidado a visitar o escritório deles no Rio, passar um dia lá na verdade, uma Sexta-feira. Me mandaram as passagens e a reserva do hotel, e fui numa Quinta-feira a noite me hospedar no ibis Styles de Botafogo, um bairro de classe média alta do Rio de Janeiro.

Acontece que eu esqueci de levar escova e pasta de dente, e eu precisava comprar uma; brasileiros são notoriamente obcecados por escovar os dentes e eu não poderia dormir sem tê-lo feito. Uma olhadinha no Google Maps me revelou que eu estava com sorte, havia uma farmácia 24 horas vizinha ao hotel. Eu caminhei até lá e pra minha surpresa a farmácia parecia estar fechada, com fortes portões e grades sobre as vitrines, nem sequer dava pra ver se tinha alguma luz acesa dentro.

E aí o negócio começou a ficar curioso. Eu tirara meu celular do bolso e começara a buscar outra farmácia no Google Maps quando escutei alguém falando comigo de algum lugar alto.

— Ali do lado, ó — falou um homem numa varandinha do segundo andar de um apartamento do outro lado da rua
— Hã, é o quê? — falei enquanto achava ele
— Tem uma janelinha ali do lado onde você pode falar com um atendente.
— Ah, brigado!

A farmácia, com setas apontando pra a janelinha.
A farmácia, com setas apontando pra a janelinha.
Fonte: Google Street View

Já havia muito para processar, mas achei a janelinha, apertei o botão do interfone — Caceta! O que eu tô fazendo? Se a farmácia não tá segura, eu também não tô!, pensei enquanto esperava — e o atendente respondeu.

— Oi?
— Oi, eu queria uma escova e uma pasta de dente
— De que marca?
— A pasta de dente pode ser Colgate, mas qualquer outra serve também se não tiver. A escova não importa a marca.
— Ok. — E escutei o barulhinho de interfone desligando.

E se alguém me assaltar? Eu pensei enquanto checava os arredores, a rua estava escura e vazia. Essa farmácia ser tão protegida e não ter falido só pode significar duas coisas: que o negócio é lucrativo e é perigoso.; minha tensão aumentava enquanto esperava. Claro que é lucrativo, muitos hóspedes deste hotel devem precisar vir aqui assim como eu.; era minha melhor hipótese. E se eu fosse ladrão, este parece um ótimo lugar pra ficar esperando otário.

O atendente abriu a janelinha e empurrou uma maquininha de cartão de crédito pra eu pagar. A janelinha fechou, a janelinha abriu, e o atendente empurrou os items num saquinho de papel. Eu agradeci e me apressei de volta pra o hotel. Ali eu realmente me questionei se seria uma boa idéia mesmo me mudar pro Rio, essa não é uma realidade razoável; uma farmácia precisar de tanta proteção física contra o crime é loucura. Primeiro Strike.

Mas não existe esse negócio de lutar contra o coração. O dia seguinte na VTEX foi incrível, eu aprendi sobre os produtos, sobre como a empresa funcionava, a cultura, as pessoas que trabalhavam lá — muitas tinha sido meus colegas de universidade —, a tecnologia deles, e eu fui fisgado; especialmente interessado pelo VTEX IO, uma plataforma serverless/low-code para e-commerce. Eles não me entrevistaram, passaram o dia fazendo apresentações para mim e alguns outros candidatos. Eu nem sequer sabia que era um "candidato". No fim do dia me chamaram pra uma salinha e me fizeram uma proposta, eu dei uma negociada e falei que caso eu aceitasse seria sob a condição de que eu trabalharia no VTEX IO, e eles ficaram mais do que felizes em me conceder esse desejo. No sábado viajei de volta pra São Paulo, no domingo mandei um e-mail aceitando a proposta.

Eu me mudei pra o Rio um pouco mais de 1 mês depois pra começar o melhor emprego que eu já tive na vida. Mas eu ainda temia o Rio, e na minha segunda semana lá eu teria uma pequena provação.


Segundo Strike

Era sexta-feira a noite no escritório, logo depois do expediente, fechando minha segunda semana na VTEX. A gente estava tomando cerveja no auditório, planejando como sextaríamos. A Feira de São Cristóvão é um pedacinho do nordeste no Rio de Janeiro, lá encontra-se comida, artesanato, restaurantes, música, dança, shows, e claro que vários karaokês também. Só é um pouquinho longe do escritório da VTEX, pra os padrões cariocas.

Estimamos que caberíamos em 3 carros, e portanto chamamos 3 Uberes. O primeiro veio e levou o primeiro grupo, o segundo veio e eu entrei nele, do terceiro eu falo já já. Quando chegamos na Feira de São Cristóvão encontramos o primeiro grupo facilmente, compramos nossa entradas por uns R$ 5 cada, e entramos. No que a gente dava uma passeada, tomando cerveja, vendo as coisas, notamos que o terceiro grupo estava demorando um pouquinho pra chegar. Eventualmente chegaram e quando os encontramos perguntamos porque demoraram tanto.

— Então... — um deles começou — Teve um arrastão quando a gente tava passando pelo Túnel Santa Barbara.
Oi!? — O resto de nós expressamos com diferentes palavras e termos, e alguns doces palavrões talvez tenham sido usados — O quê que aconteceu!?
— A gente tava parado no trânsito mais ou menos no meio do túnel, o que é meio estranho, mas sexta início da noite deve poder acontecer mesmo né. A gente achou que talvez tivesse acontecido algum acidente ou alguma coisa assim e o trânsito ficou meio engarrafado e...
— Sim véi, beleza, mas e o arrastão? — Alguém falou
— Então... — Eu tava chocado pela naturalidade dele falando dessa história — Do nava um monte de moto começou a vir na contramão, e a gente se ligou que eles tavam fugindo de alguma coisa. As outras pessoas dos outros carros devem ter pensado a mesma coisa porque começaram a sair dos carros e correr em direção à entrada do túnel. Aí a gente fez a mesma coisa. Corremos pra fora do túnel, continuamos até achar outra avenidade e pegar outro taxi pra vir pra cá.
— Carai, foda. Pelo menos vocês não perderam nada né? — Outra pessoa falou
— Pois é
— Bom, bora achar um karaokê galera!
— Partiu!! — todo mundo reagiu.

Eu fui pego de surpresa tanto pelo acontecimento quanto pela normalização das pessoas. Eu tinha certeza absoluta que se eu estivesse naquele terceiro carro e passado por aquela situação, eu teria me mudado de volta pra São Paulo na semana seguinte, procurado outro emprego, e me demitido da VTEX. Só duas semanas no Rio e passar por um arrastão? Já? Não obrigado, teria sido a gota d'água. Mas eu não estava naquele carro, aquilo nunca aconteceu comigo, e eu nunca fui assaltado na minha vida. Ainda assim, segundo Strike.

Os 2 anos seguintes foram incríveis, eu construí muitas coisas das quais me orgulho na VTEX, aprendi com os melhores profissionais com quem já trabalhei, fui mentorado, mentorei pessoas, construí um time, tive burn out, me diverti, tive impacto real e fui realmente impactado. Mas toda história tem um fim, e a COVID foi o fim da minha história com o Rio de Janeiro. Quando eu percebi que aquilo não era um evento curto, percebi que eu não poderia continuar lá; outro dia eu dia eu conto o porquê. Por hora saiba que este foi o terceiro Strike.